Arrendamento Local, será este o seu fim?

Provavelmente não, mas é mais um prego no caixão que tem vindo a ser desenhado para esta atividade nos últimos tempos, um serviço que desde o seu nascimento tem sido explorado com sucesso  fundamentalmente para fins turísticos. 

Vem isto a propósito do acórdão emitido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), noticiado hoje, que vem anular a possibilidade de coexistirem, no mesmo prédio, habitação permanente e temporária. Ou seja, o Arrendamento Local deixa de ter enquadramento legal que o suporte, se o imóvel para o qual foi atribuída a Licença de AL não prever o seu uso para fins turísticos. 

O fim a que destina um imóvel, em regime de propriedade horizontal, é definido aquando da elaboração do Título Constitutivo e normalmente é igual para todas as frações do prédio, podendo no entanto coexistir frações destinadas a atividades comerciais (lojas), com as restantes que se destinam a fins habitacionais, desde que tal conste no Título Constitutivo. O que não é normal, e agora foi confirmado pelo STJ é que uma fração destinada a fins habitacionais seja convertida para outros fins, sem que o condomínio o aprove de forma unanime, e a Câmara Municipal seja chamada a vistoriar o processo, autorizando a mudança do estatuto de propriedade horizontal.

E o que pode acontecer aos imóveis aos quais foi atribuída uma Licença de AL?

Essa é a grande questão que irá dominar os próximos tempos, sendo que esta decisão vem introduzir mais uma polémica em conjunto com as que recentemente têm atingido esta atividade económica. Se se tratar de uma moradia, o futuro não será tão negro, desde que a Câmara não levante obstáculos na renovação da licença, como recentemente começou a acontecer, nomeadamente através do exercício do direito legal de preferência por parte das Câmaras, que tentam desesperadamente gerar nova oferta habitacional, num mercado atingido por forte escassez.

Já no que diz respeito aos apartamentos, avizinha-se uma forte dor de cabeça para muitos empresários e proprietários que agora ficam à mercê de uma simples decisão de um tribunal, bastando que um qualquer condómino insatisfeito invoque esta decisão jurídica sob a capa da jurisprudência. A Licença de AL emitida pela Câmara deixa assim de ser uma defesa e uma garantia.

Resta a possibilidade de o proprietário obter a autorização unânime do condomínio para a mudança no regime de propriedade horizontal da fração, mudando-a de fins habitacionais para fins turísticos, o que não se afigura fácil, especialmente porque as Câmaras estão num momento de contra ciclo no que diz respeito ao apoio e incentivo a esta atividade.

Arrendamento Local o novo vilão das cidades

Aqui e em muitas cidades da Europa o AL é o novo vilão a abater. É-lhes atribuída a culpa pela carestia do mercado de arrendamento e da venda de casas. É-lhes atribuída a culpa pela sujidade e pela poluição sonora que invade bairros até então tranquilos. É-lhes atribuída a culpa pelo crescimento exponencial do turismo de massas. É injusto? Parcialmente sim, porque a história não se resume apenas a estas criticas.

É bom não esquecer que durante muitos anos, foram estes empresários que com fundos próprios ou com recurso a crédito, contribuíram para recuperar muitos imóveis devolutos ou em estado de perigo e abandono, lavando a cara dos bairros históricos e embelezando as cidades. Foi um esforço brutal de reabilitação urbana que os empresários do Arrendamento Local conseguiram fazer, em apenas meia dúzia de anos e que as Câmaras Municipais não conseguiram fazer durante décadas.

Mas não foi só. O crescimento do Turismo nos últimos anos tem sido avassalador. A Hotelaria tradicional não tinha, nem tem, capacidade para dar resposta a esta vaga que invadiu as principais cidades europeias. O AL impôs-se como uma força de descompressão, compensando a escassez de oferta e gerando negócios à sua volta que extravasaram a mera receita do alojamento. Muitas zonas de Lisboa e Porto, que estavam abandonadas, ganharam uma nova alma. Novos negócios e novas lojas surgiram, criando uma nova geração de empresários. Tudo isto em apenas meia dúzia de anos. É obra! E já para não falar no aumento da receita fiscal que o Estado e as Autarquias arrecadaram com os negócios imobiliários associados.

Arrendamento Local, passado, presente e futuro

A decisão deste acórdão vem pôr fim a um período de contradição e indefinição legal que dura há quase 10 anos. O regime de exploração do Arrendamento Local foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 128, de 29 de agosto de 2014. Desde então, maioritariamente nas grandes cidades, emergiram em catadupa novos negócios turísticos (licenciados por uma simples Licença AL emitida pelas câmaras) que se impuseram como fortes concorrentes em relação à atividade hoteleira tradicional.

Tal nunca foi bem visto pelos industriais do setor, que se queixavam de serem alvo de restrições e regras muito exigentes, ao contrário da oferta turística de alojamento local, onde as inspeções e as regras de funcionamento eram francamente menos exigentes. O destinatário do serviço era o mesmo da hotelaria tradicional: o alojamento para fins turísticos, mas os custos associados ao AL eram manifestamente menores, desviando receitas do setor e exercendo uma concorrência desleal, segundo estes empresários.

Mas a polémica não se ficou por aqui. Atrás da vaga de imóveis que viram o seu fim habitacional convertido para fins turísticos, surgiram acusações por parte dos autarcas e das populações relativamente à descaracterização dos prédios e dos bairros afetos a esta atividade, que viram as suas características residenciais mudar do dia para a noite, com prejuízo do seu fim original. Os residentes queixavam-se do ruído, da barreira linguística face aos residentes de curta duração, etc. etc. As Câmaras por seu lado viram-se confrontadas com problemas de oferta de habitação, pois os proprietários que aderiram a este regime, deixaram de estar disponíveis para o arrendamento de longa duração, e a relação entre oferta residencial versus oferta turística, mudou muito rapidamente pendendo para o lado do turismo.

Tal contribuiu para um aumento dos preços das casas, particularmente nas zonas históricas das grandes cidades, "expulsando" os seus habitantes para a periferia e descaracterizando os seus bairros. O regime de AL iniciou então o seu período de contração: as Câmaras, nomeadamente as de Lisboa e Porto, começaram a restringir o número de licenças em determinadas freguesias, criando quotas máximas, sempre que o rácio entre o número destas unidades e o número de fogos de habitação fosse igual ou superior a 2,5%. Mais recentemente deixaram de renovar muitas das licenças de AL, visando reduzir ainda mais o seu impacto.

Assim, é fácil de adivinhar que o futuro desta modalidade de investimento está seriamente comprometido, não só pelos obstáculos que lhe têm sido impostos, mas fundamentalmente pelo clima hostil que a maioria dos autarcas lhes tem votado. Ora, o investimento não gosta de risco envolvido num ambiente legal hostil, em que o dia de amanhã é uma grande interrogação. Só em Lisboa existem atualmente quase 20.000 licenças AL atribuídas, sendo que 3.500 delas estão inativas (muito por causa da pandemia e da quebra turística). O que será que lhes está destinado?

O Arrendamento Local irá por certo sofrer imenso com este conjunto de limitações e atavios legais. Por outro lado, a esperança de muitos políticos que pensam que estas restrições poderão canalizar muitos destes imóveis para o mercado residencial, a preços acessíveis ao poder de compra dos residentes e respetivos familiares (dando continuidade aos bairros e às suas tradições), poderá sair gorada. Os investimentos que foram necessários para colocar esta atividade de pé, mais facilmente serão canalizados para a venda dessas casas a estrangeiros, do que na aposta em arrendamentos de longa duração, ou na desvalorização dos preços de venda.

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