O problema da habitação em Portugal atingiu proporções alarmantes, transformando-se numa crise social e política de grande envergadura. A escalada dos preços no mercado imobiliário, tanto na compra como no arrendamento, confronta os cidadãos com dificuldades crescentes no acesso a uma habitação condigna. Este cenário complexo cruza-se agora com a instabilidade política, após a queda do governo e a convocação de novas eleições, levantando dúvidas sobre o futuro das políticas de habitação no país.
O Panorama da Crise de Habitação
Nos últimos anos, Portugal tem assistido a um aumento exponencial dos preços das casas, impulsionado por diversos fatores:
- Aumento do turismo e investimento estrangeiro: Estes setores, embora importantes para a economia, contribuíram para inflacionar o mercado imobiliário, especialmente nos grandes centros urbanos como Lisboa e Porto.
- Regime fiscal favorável para não residentes: Atraiu investimento imobiliário, mas também reduziu a oferta de habitação acessível para residentes.
- Escassez de oferta: A construção de novas habitações não acompanhou o ritmo da procura, agravando a pressão sobre os preços.
- Salários baixos e precariedade laboral: Dificultam o acesso à habitação, especialmente para os jovens e famílias de baixos rendimentos.
Este contexto resultou numa situação em que muitos portugueses, em particular os jovens, se veem impossibilitados de comprar ou arrendar casa nos grandes centros urbanos, sendo forçados a viver em zonas mais periféricas, com todas as implicações que isso acarreta em termos de mobilidade, qualidade de vida e oportunidades.
A Instabilidade Política e a Crise da Habitação
Nos últimos anos, o problema da habitação em Portugal agravou-se significativamente, sobretudo para a classe média. Não é apenas um desafio económico, mas também político, profundamente afetado pela recente instabilidade governativa. Com a queda abrupta do governo liderado por António Costa, em 2023, na sequência de uma crise política e subsequente dissolução do Parlamento, todas as propostas legislativas que procuravam resolver a crise habitacional ficaram praticamente congeladas.
Antes da queda do executivo, o pacote legislativo "Mais Habitação" prometia intervir no mercado imobiliário, aumentando a oferta de casas acessíveis e reduzindo os efeitos negativos da especulação, nomeadamente através da limitação de licenças de Alojamento Local e do fim dos chamados vistos gold para investidores estrangeiros. Contudo, a dissolução parlamentar e as eleições antecipadas em 2024 paralisaram muitas dessas medidas, acentuando ainda mais a incerteza num mercado imobiliário já fragilizado pela falta de clareza e estabilidade regulatória. A recente crise política, que culminou com a queda do governo, surge num momento crítico para a definição de políticas de habitação eficazes. O adiamento de propostas legislativas e a incerteza política podem agravar ainda mais o problema.
- Propostas Legislativas Adiada: O governo que agora caiu tinha em mãos um pacote de medidas para a habitação, o programa "Mais Habitação". Algumas destas propostas, como o fim dos vistos gold e o Alojamento Local, já tinham gerado debate e controvérsia. Com a queda do governo, a implementação e o futuro destas medidas tornam-se incertos.
- Campanha Eleitoral e Habitação: A habitação deverá ser um tema central na campanha para as próximas eleições legislativas. Os diferentes partidos deverão apresentar propostas e soluções para este problema que afeta diretamente a vida de muitos portugueses. Será crucial analisar as propostas de cada partido e o seu compromisso real com a resolução da crise habitacional.
- Prioridade Adiada? A instabilidade política pode levar a que a habitação seja relegada para segundo plano, face a outras prioridades consideradas mais urgentes. No entanto, a resolução da crise habitacional é fundamental para a coesão social, o desenvolvimento económico e a qualidade de vida em Portugal, não podendo ser encarada como uma prioridade secundária.
Especialistas do setor sublinham que esta instabilidade política aumentou significativamente a inseguridade no mercado imobiliário português. Promotores, investidores e compradores ficaram reticentes perante uma realidade onde as regras mudam constantemente e onde não é possível prever com segurança qual será a direção política futura.
Medidas de Apoio e o Paradoxo dos Preços
Uma das intervenções recentes mais comentadas no setor habitacional português foi a iniciativa legislativa que pretendeu apoiar a compra da primeira habitação por jovens. Este conjunto de medidas incluiu financiamento até 100% do valor da casa, com uma garantia estatal de 15%, bem como condições favoráveis de crédito bancário. A intenção era clara: facilitar a entrada dos jovens adultos portugueses no mercado imobiliário, sobretudo daqueles com rendimentos médios e reduzidas poupanças iniciais.
No entanto, apesar da boa intenção das medidas, o efeito prático revelou-se perverso. Ao estimular a procura por imóveis dentro dos limites elegíveis para os apoios governamentais, o resultado foi precisamente o oposto do pretendido: com mais compradores capazes de adquirir casas dentro dessas faixas de preço, a procura disparou repentinamente, mas sem que a oferta acompanhasse esse movimento, o que acabou por provocar uma subida generalizada dos preços desses imóveis. Assim, o efeito positivo inicial transformou-se rapidamente num agravamento adicional do problema de acessibilidade à habitação para a classe média jovem portuguesa.
Após as eleições antecipadas de 2024, o novo executivo, liderado por uma coligação de centro-direita, revogou diversas medidas do "Mais Habitação" e introduziu uma nova estratégia – o programa "Construir Portugal". Este novo programa aposta numa abordagem diferente: em vez de penalizar diretamente o mercado privado com regulações restritivas, o governo optou por criar estímulos fiscais e incentivos diretos à construção e reabilitação urbana, como reduzir o IVA da construção para 6%, e incentivar projetos privados que ofereçam habitação acessível.
Evolução Recente: Preços, Financiamento e Acessibilidade
A crise habitacional em Portugal não é apenas política; é uma crise económica e social profunda que afeta diretamente a vida da classe média. Em 2023, apesar de algum abrandamento no ritmo da valorização imobiliária face aos anos anteriores, os preços continuaram a subir significativamente. A nível nacional, o preço mediano de venda ultrapassou os 1.600 euros por metro quadrado, com aumentos ainda mais expressivos em zonas como Lisboa e Porto, onde a habitação está a atingir valores proibitivos para grande parte das famílias portuguesas.
Este contexto conduziu a uma rápida deterioração das condições de acessibilidade à habitação. A chamada taxa de esforço – a percentagem do rendimento mensal necessária para sustentar o pagamento das prestações ou rendas – subiu a níveis nunca vistos. Em média, comprar uma habitação em Portugal passou a exigir mais de 70% do rendimento disponível anual, enquanto arrendar já supera 80%, percentagens que ultrapassam amplamente os limites considerados sustentáveis pelos bancos e economistas. Esta situação deixou muitas famílias portuguesas de classe média incapazes de aceder ao crédito para comprar casa, uma vez que os bancos mantiveram critérios apertados na concessão de empréstimos.
Paralelamente, as subidas acentuadas das taxas de juro impostas pelo Banco Central Europeu complicaram ainda mais o panorama para quem já tem crédito habitação. Durante 2023, as taxas de juros médias dos contratos de crédito habitação triplicaram face ao ano anterior, elevando a prestação média mensal em cerca de 35%. Como resultado, os encargos financeiros das famílias aumentaram rapidamente, reduzindo ainda mais o seu poder de compra e a capacidade para entrar no mercado imobiliário.
Contexto Europeu e Soluções Comparativas
Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. Nos últimos anos, quase todos os países europeus enfrentaram aumentos significativos nos custos da habitação, resultando numa crise generalizada que tem levado muitos governos a reforçar políticas públicas de controlo do mercado e a aumentar significativamente os investimentos em habitação acessível.
Países como a Áustria são frequentemente citados como modelos de sucesso. Em Viena, por exemplo, cerca de 25% da população vive em habitação pública municipal, resultado de décadas de investimentos contínuos e consistentes do Estado na construção de casas acessíveis. Em contraste, Portugal tem um dos menores stocks de habitação pública da União Europeia, representando menos de 3% do total nacional, o que demonstra claramente o impacto positivo de um planeamento consistente, de longo prazo e fortemente apoiado pelo setor público.
Além disso, em várias cidades europeias, iniciativas de controlo de rendas têm sido utilizadas para conter a especulação imobiliária e o aumento descontrolado dos preços no mercado privado. Berlim, Paris e Barcelona introduziram medidas que limitam os aumentos anuais das rendas ou impõem quotas obrigatórias de habitação acessível em novos projetos imobiliários. Outro exemplo positivo é a Finlândia, cujo modelo “Housing First” permitiu praticamente erradicar a população sem-abrigo, oferecendo casas permanentes acompanhadas por apoio social, em vez de soluções temporárias ou emergenciais.
Perspetivas Futuras para Portugal
O mercado imobiliário português encontra-se atualmente num ponto crítico, dependente da capacidade política para implementar soluções estruturais. Com o novo governo e o recente plano "Construir Portugal", abre-se uma oportunidade para criar condições favoráveis ao aumento da oferta de habitação, única forma de estabilizar ou reduzir preços a médio prazo.
Todavia, as medidas para aumentar a oferta precisam de tempo para surtir efeito. Portugal acumulou, ao longo das últimas duas décadas, um défice crónico na construção de habitações face ao crescimento demográfico e económico, situação que não será corrigida rapidamente. Além disso, é essencial que o mercado disponha de estabilidade legislativa e fiscal, condição necessária para atrair investimento sustentável e assegurar um crescimento equilibrado do mercado imobiliário.
O próximo governo terá a responsabilidade de enfrentar este problema de forma determinada e eficaz. Será necessário um conjunto de medidas abrangentes e sustentáveis, que passem por:
- Aumentar a oferta de habitação acessível: Incentivar a construção de novas habitações, com preços controlados e direcionadas para as necessidades da população residente.
- Regular o mercado de arrendamento: Promover a estabilidade e a segurança no arrendamento, com medidas que protejam inquilinos e proprietários de forma equilibrada.
- Rever os incentivos fiscais: Redirecionar os incentivos fiscais para a habitação acessível e para a reabilitação urbana, em detrimento da especulação imobiliária.
- Promover políticas de ordenamento do território: Combater a concentração excessiva da população nos grandes centros urbanos e promover o desenvolvimento de outras regiões do país.
Em resumo, se Portugal quiser verdadeiramente deixar de adiar a resolução do problema habitacional, precisará de uma abordagem integrada e de longo prazo, capaz de conjugar intervenção pública, estímulos ao setor privado e estabilidade legislativa. Só assim poderá proteger os interesses da classe média portuguesa e garantir que o direito à habitação deixe de ser uma promessa política constantemente adiada e se torne, finalmente, uma realidade acessível para todos.