Fim da Licença de Utilização e da Ficha Técnica. Não compre gato por lebre!

Surgiu recentemente uma novidade no mercado imobiliário português: o "Simplex dos Licenciamentos" agora possibilita a venda de uma casa, mesmo sem licença de habitação ou ficha técnica!

Ao ser aprovado no dia 8 de janeiro de 2024 o "Simplex dos Licenciamentos", no âmbito do Pacote Mais Habitação, deixou de ser obrigatória a apresentação da licença de utilização e ficha técnica do imóvel, ou prova da sua existência, no momento em que realiza a escritura de compra e venda de uma casa, com efeitos retroativos a 1 de Janeiro de 2024.

Mas afinal, para que servem estes documentos?

Quando, em Portugal, nas décadas de 80 e 90, foi criada legislação que exigia a apresentação da Licença de Utilização e, posteriormente, da Ficha Técnica para a realizar a escritura de venda de uma casa, a intenção era proteger o comprador, especialmente num mercado então saturado de "casas ilegais", sem condições de habitabilidade/salubridade, apresentando problemas sérios e riscos para os moradores.

A Ficha Técnica, obrigatória para todos os edifícios construídos ou sujeitos a remodelações/alterações após 30 de março de 2004, visa identificar os responsáveis pelas obras, fornecer detalhes sobre a construção do imóvel e assegurar meios de defesa em caso de litígio.

A polémica acerca do fim da Licença de Utilização e da Ficha Técnica

Em entrevista concedida ao jornal ECO, Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários, resumidamente afirmou que:

  • O regime atual, agora anulado pelo 'Simplex dos Licenciamentos', foi implementado por decreto-lei em 1985 com o objetivo de “desincentivar a proliferação descontrolada de imóveis ilegais verificada nos anos 70 e 80” (posteriormente detalhado por outro decreto-lei emitido em 1999) e visava: “...proteger os compradores, sobretudo de imóveis destinados a habitação”.
  • “Com o novo regime, o legislador eliminou a obrigatoriedade de o notário verificar a existência de licença de utilização do imóvel e da ficha técnica. […] Atualmente, o notário limita-se a informar, no momento da transação, ‘que o imóvel pode não estar munido dos títulos urbanísticos necessários à sua utilização’. […] Foi abolida a única forma de controlo existente na transmissão de imóveis, que tinha como único propósito a proteção dos compradores/consumidores”.
  • "Eu acho que é um erro jurídico. Imagine só: eu, para comprar uma casa, não tenho que exibir licença de utilização, porque o legislador revogou a norma que o exigia. Mas, para fazer um contrato de promessa de compra e venda de uma casa (CPCV), preciso de exibir uma licença de utilização, porque o legislador se esqueceu que estava noutro artigo do Código Civil. Claramente, o legislador não conhecia o sistema."

Segundo dados do IHRU, em 2018 estavam contabilizadas 24.723 habitações ilegais em Portugal, dados esses que não foram esclarecidos no Censos 2021.

O governo veio entretanto a público alegar que a dispensa da Licença de Utilização e Ficha Técnica teve a ver com questões de coerência face ao restante decreto, e que:

“Como referido no preâmbulo do diploma, ‘é eliminada a autorização de utilização quando tenha existido obra sujeita a um controlo prévio, substituindo-se essa autorização pela mera entrega de documentos, sem possibilidade de indeferimento, mas, naturalmente, mantendo-se todos os poderes de fiscalização durante e após a obra." 

Ao referido acrescenta-se que nos casos em que “exista alteração de uso sem obra sujeita a controlo prévio” a lei diz que deve ser feita uma comunicação com um prazo de 20 dias para o município responder, “considerando-se aceite o pedido de autorização de utilização caso o município não responda”. Isto é, ocorre deferimento tácito.

Mas quando questionado pelo Jornal Eco sobre se a dispensa prevista no Simplex não incrementa o risco para os compradores, que podem acabar por adquirir imóveis sem licença, que, no limite, poderiam ter de ser demolidos por ordem das Câmaras. O gabinete de Mário Campolargo não respondeu.

Perigos e desafios na abolição da Licença de Utilização e da Ficha Técnica

Face ao exposto, posso retirar várias previsões e constatações:

  • Se o propósito era simplesmente aumentar o número de habitações disponíveis para venda e arrendamento, é previsível o sucesso desta medida.
  • Contudo, a proteção ao comprador é colocada em xeque, visto que, na ausência de documentos que comprovem a conformidade da construção com os padrões de qualidade exigidos por lei e pelas autarquias, o comprador poderá estar a "comprar gato por lebre" e algo que não corresponde ao prometido.
  • A isenção destes dois documentos, especialmente da Licença de Habitação, gera controvérsia, uma vez que, embora seja aceite por notários, solicitadores e advogados, os compradores podem enfrentar obstáculos caso necessitem de crédito para aquisição da habitação. Existem casos, como um imóvel que estou a mediar, cujo proprietário espera há um ano pela emissão da Licença de Utilização pela Câmara de Cascais, em que o banco do comprador, tendo aprovado o financiamento para a compra, recusa prosseguir sem a mencionada Licença de Habitação, apesar da nova legislação.
  • O legislador, ao dispensar da Licença de Utilização na escritura de compra e venda de uma casa, mantendo a obrigatoriedade da mesma no CPCV, criou um imbróglio para os proprietários, compradores e mediadores imobiliários. Imagino, em muitos casos, a deceção para todos os envolvidos, quanto a transação imobiliária passa à fase de formalização do CPCV e o notário se recusa a permitir a sua assinatura! A alternativa passa por dispensar o CPCV e passar diretamente à escritura final, o que não é pacifico:
    • nem para o proprietário, que mantém a casa em espera por um período que se pode estender entre 60 a 120 dias;
    • nem para o comprador, que sem CPCV, não tem qualquer garantia entre o momento do acordo de venda até ao momento em que possa realizar a escritura;
    • nem para o consultor imobiliário, que vê multiplicados os riscos do negócio cair e perder o trabalho efetuado;
  • Em certas zonas, a avaliação e consequentemente os preços de venda no mercado de imóveis usados poderão diminuir. Vários proprietários, que foram impedidos durante muitos anos de vender as suas propriedades por falta de Licença de Utilização - as chamadas "casas ilegais", planeiam vendê-las a preços inferiores. Alguns, para atrair compradores com dinheiro a pronto, contornando as barreiras ao crédito habitacional; outros, conscientes do valor inferior dos seus imóveis, mas ainda assim necessitados de vendê-los. Quanto aos habituais "estudos de mercado" utilizados por consultores e proprietários para escolher o preço de venda, a desordem é evidente! No mesmo saco vão encontrar gatos e lebres e a negociação não se adivinha fácil.

Ou seja, ocasionalmente, os resultados práticos divergem das boas intenções do legislador. Se o objetivo era dinamizar o mercado habitacional, ampliando a oferta e reduzindo os preços, isso poderá ser alcançado através desta lei, mas implicará um aumento dos riscos para o comprador, o que não é bom!

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