Habitação, um direito, um dever ou uma dor de cabeça? À primeira vista, dir-se-ia que com as dificuldades que se avizinham nos próximos anos, a habitação pende mais para o lado do "dever", com as taxas de juro em rota ascendente. A palavra dívida volta a preocupar os portugueses e a trazer dores de cabeça aos governantes.
Sejamos claros, sem o crédito à habitação não seria possível a muitos portugueses usufruir dum direito básico: ter um teto e condições de habitabilidade adequadas. O BCE acabou de anunciar medidas que vão encarecer o custo desse crédito. E avisou que vem aí mais aumentos!
Após uma subida de 0,5% em Julho, segue-se uma subida de 0,75% nas taxas diretoras do BCE. O maior aumento numa década! E não vai ficar por aqui, após os 75 pontos-base anunciados, os analistas preveem um aumento de 50 pontos, quer em outubro, quer em dezembro de 2022. As taxas de juro chegariam assim em fevereiro aos 2% e já se fala em taxas diretoras na ordem dos 4% num prazo de 3 anos.
Considerando que em Portugal o recurso ao crédito à habitação é generalizado e tem vindo a crescer nos últimos anos, basicamente desde 2014, em linha com o crescimento do mercado imobiliário, é fácil de prever que estas medidas não podem deixar de ter um impacto negativo no futuro próximo.
Apesar de ainda não ter sido atingido o número de créditos à habitação concedido nos anos anteriores à crise de 2008, os números têm vindo a crescer desde 2014. A grande diferença é que, em termos absolutos, o valor do crédito concedido subiu, porque entretanto o preço das casas aumentou, ou seja o nível de endividamento é mais elevado.
Segundo o Barómetro do Crédito à Habitação 2022, da plataforma ComparaJá, com base no universo de 7 000 utilizadores que recorreram ao seu serviço de comparação de produtos financeiros, podemos constatar que:
- Em média os portugueses pediram 186 000 € de empréstimo para aquisição de casa, durantes os primeiros meses de 2022.
- 37% dos pedidos de crédito à habitação são submetidos por pessoas que ganham até 1000 euros por mês;
- 49% dos indivíduos têm entre 26 e 35 anos e apenas 23% têm idades superiores a 40 anos. Ou seja, a maioria são jovens;
- 4 em cada 10 dos pedidos referem-se a uma duração de empréstimo entre os 36 e os 40 anos;
- Quanto ao valor da prestação, 34% dos requerentes admitem pagar no máximo uma prestação até 400€ mensais.
Ou seja, olhando para estes números e para o perfil dos candidatos ao crédito à habitação: cerca de 1/3 é jovem, pretendem empréstimos de longa duração (a parcela de juros a pagar é maior, o que significa um maior endividamento), possui rendimentos baixos e aceitam uma taxa de esforço elevada. Ora este perfil não será muito diferente dos beneficiários que têm usufruído deste tipo de crédito nas últimas décadas.
A taxa de esforço elevada é um dos riscos que o BCE tem vindo a alertar, mas que ainda afeta uma enorme fatia dos beneficiários. Existem formas de contornar as limitações impostas pelos bancos (nomeadamente através do crédito ao consumo), o que permitiu a muitos portugueses ultrapassar esta limitação e conseguir empréstimos próximos dos 100% do valor da casa.
Resumindo, com a inflação a atingir valores máximos dos últimos 30 anos, os preços das casas a baterem sucessivos record, as taxas de juro a crescer como já não se via há muitos anos e as restrições ao crédito impostas pela banca europeia, estamos perante uma tempestade perfeita, que não pode deixar de nos preocupar, sendo previsível que tenha um impacto sério no mercado imobiliário.
O problema é que as soluções alternativas à compra de casa com recurso ao crédito não abundam. O mercado de arrendamento continua a empurrar o valor das rendas para cima e não se preveem descidas, até porque o contributo da inflação para o valor das rendas terá tendência para agravar ainda mais este cenário. A resposta do Estado em relação à habitação de rendas acessíveis ou à construção de novas casas com preços controlados, tem sido lenta e muito dependente do PRR, cujo andamento está significativamente atrasado.
O que nos espera nos anos mais próximos?
Face a todo este cenário, as previsões são cinzentas, na melhor das hipóteses. Mas como em tudo o resto, o ser humano tem capacidades ilimitadas de contornar as dificuldades, gerar novas soluções e construir novas oportunidades. Uma coisa é certa, todas as dificuldades se ultrapassam, é tudo uma questão de tempo e velocidade de reação. Aqui ficam algumas das minhas previsões:
Crédito à habitação
Face ao descrito parece obvio que o governo tem aqui um problema sério para resolver. Urge dar um contributo no sentido de aliviar o choque previsível do aumentos das taxas de juro. Uma das iniciativas que o Governo poderá tomar, poderá ser um alívio fiscal através do alargamento da dedução destes juros em sede de IRS.
Esta medida já existiu e continua válida para os contratos estabelecidos antes de 2012, mas foi interrompida nessa data. Deste modo, regressaria o alívio fiscal para todos os contratos celebrados após 2012: um universo estimado em 663 mil contratos de crédito à habitação, celebrados desde então.
Isto não obsta, que as dificuldades de acesso ao crédito se venham a agravar nos próximos tempos, para os novos contratos face ao previsível aumento da taxa de esforço das famílias.
Mercado da Mediação Imobiliária
Nos últimos 8 anos, assistimos a um crescimento exponencial do número de agências e profissionais ligados a mediação imobiliária. Fala-se em quase 50 000, segundo números do INE!
Este aumento de consultores imobiliários, que acompanhou o crescimento do mercado imobiliário, impulsionado pelo crescimento do turismo e pela atratividade do país, não é sustentável. Muitos dos meus colegas não conseguem manter uma remuneração consistente ao ponto de construir uma carreira sólida nesta área. Alguns, apenas se dedicam à mediação em part-time, outros continuam a acalentar a esperança de melhores tempos e aguardam, muitas vezes suportados por poupanças anteriores.
Como consequência deste excesso de concorrência e da atual escassez de imóveis, uma parte destes novos profissionais não está a realizar um trabalho profissional e assume uma atitude "bastante agressiva" face aos seus colegas e aos seus próprios clientes. É o vale tudo, motivado pelo desespero de não conseguirem realizar transações. Ora isto não é bom!
O que adivinho é que uma parte das agências irá fechar ou unir-se a marcas de franchising mais resilientes, vendo os seus melhores profissionais integrados como equipas. Muitos outros consultores, vão acabar por fazer as contas e perceber que a remuneração média que conseguem, deduzidas as despesas, não é recompensadora face aos desafios da profissão e vão sair desta atividade, pelo menos temporariamente.
Todo este ambiente cria um desafio ainda maior aos consultores que fazem desta atividade o seu modo de vida. Necessitam comunicar ainda mais e melhor com os seus clientes, para lhes demonstrar que o profissionalismo e o investimento feito por si constitui uma proposta de valor que não pode ser comparada com os "amigos" e "para-quedistas", que procuram apenas uma oportunidade "para fazer uns trocos". Nada me move contra aqueles que estão interessados em abraçar esta profissão, muito pelo contrário, desde que joguem limpo, sejam profissionais e estejam dispostos a dedicar-se de alma e coração a um trabalho que é muito exigente e desafiador.
Mercado de Venda de Imóveis
Os preços dos imoveis vai baixar. É uma previsão fácil de antever, mas não para todas as casas, nem para todos as zonas do país, nem para todos os segmentos do mercado imobiliário.
As empresas de construção de novas casas (não apoiada por subsídios estatais) não podem, nem vão baixar os preços de venda. A inflação das matérias primas, a escassez de terrenos urbanos, as dificuldades de licenciamento municipal e o previsível aumento de salários da mão-de-obra, cada vez mais escassa, assim o determinam.
Os preços das casas renovadas, também não vão baixar, quanto muito sofrerão pequenas correções em baixa, dependendo da zona e da urgência do respetivo proprietário. Todavia, aqui há lugar para uma maior contenção, até porque uma casa renovada não é uma casa nova e os investidores irão ter um cuidado maior, quer escolhendo materiais menos nobres e mais baratos, baixando assim os custos da renovação, quer comprando casas para renovar a preços mais baixos.
O número de casas penhoradas, por não cumprimento de obrigações financeiras e fiscais, vai novamente crescer, como aconteceu noutras crises. Ao serem de novo colocadas no mercado, sê-lo-ão a preços mais baixos, até porque a Banca ou o Estado apenas pretendem reaver os valores em dívida.
Mercado de Compra de Imóveis
Pelas razões apontadas, quem decidir comprar um imóvel vai ter novas oportunidades, mas também mais dificuldades:
- A escassez atual de imóveis não vai ser resolvida no curto prazo. A nova construção é lenta, pois depende de licenciamentos que são lentos e os promotores estão mais cautelosos, face à inflação que está afetar todo o tipo de materiais de construção.
- A maior dificuldade no acesso ao crédito, vai empurrar muitos compradores para o mercado de casas usadas, abandonando o sonho de comprar uma casa nova (apesar da franca preferência dos portugueses por esta última opção).
- O custo elevado dos terrenos nos centros das cidades, vai empurrar muitos habitantes para a periferia, onde os preços das casas são mais baixos. A mobilidade elétrica poderá ajudar, pois está em vias de atenuar os custos associados à distância.
- O mercado de imóveis da Banca e dos leilões do Estado irá atrair não só investidores, mas também particulares em busca de preços mais baixos, mesmo que tenham que pagar obras de renovação.
Mercado de Arrendamento
Aqui as dificuldades prevêem-se ainda maiores. O Governo, numa tentativa de estancar o previsível aumento das rendas em Janeiro decidiu impor um teto máximo de 2% no aumento das rendas em Janeiro de 2023. Recorde-se que o aumento anual das rendas está alinhado com o valor da inflação, que se prevê que possa chegar aos 8% em 2022. Em Julho, o Índice Harmonizado de Preços no Consumidor - IHPC foi de 8,2%.
Se por um lado, tal medida poderá aliviar os arrendatários, poderá ter como consequência um aumento no valor das rendas para os novos contractos, tornando ainda mais difícil um cenário que já é difícil e de grande escassez.