Enquanto especialista em mediação imobiliária, o Idealista convidou-me para responder sobre algumas questões relativas ao tema “Ansiedade e frustração: o impacto da habitação na saúde mental”
Índice
- Quais são, hoje em dia, e muito resumidamente, as principais dificuldades para quem quer comprar ou arrendar casa?
- Qual é a raiz do problema, em Portugal?
- Para um jovem que quer comprar a primeira casa, que barreiras existem?
- Faltam incentivos? Quais? E que desafios futuros enfrenta a nova geração?
- Quem comprou casa debate-se, agora, com a subida dos juros e dificuldade em gerir a taxa de esforço. Como “sentem” o mercado, nesta matéria?
- Têm/tiveram conhecimento de algum tipo de casos de famílias que estejam no “limite” e para quem vender a casa seja opção?
- O Governo aprovou ajudas para os empréstimos da casa e apoios ao arrendamento. Como olham para estas medidas?
- Paralelamente, faltam casas para arrendar e os preços dispararam. E há mais subidas à vista. Que diagnóstico fazem deste mercado?
- Há quem procure nas periferias uma solução para arrendar casa, mas até aí os preços já são um desafio. É mesmo assim?
- O adiantamento da caução é outra dificuldade extra, por exemplo?
Dada a atualidade e pertinência deste tema, quer em termos sociais, políticos e económicos, num momento em que uma parte significativa da população portuguesa se debate com dificuldades no acesso à habitação, eis as respostas baseadas na minha experiência:
(Top▲)Quais são, hoje em dia, e muito resumidamente, as principais dificuldades para quem quer comprar ou arrendar casa?
No que diz respeito à compra de uma casa, os preços elevados, principalmente nas principais zonas urbanas ou nas localidades onde a procura turística é maior, constituem o principal problema. Este é agravado pelas dificuldades em contrair um empréstimo bancário. As taxas de juro Euribor atingiram valores que já não se registavam desde 2008. Além disso, os bancos têm vindo a endurecer as condições de aprovação dos créditos à habitação, analisando a taxa de esforço dos requerentes, que, segundo as recomendações do Banco de Portugal, não deve exceder 35%.
Relativamente ao arrendamento de casas, as dificuldades são semelhantes: o valor elevado das rendas mensais é o maior obstáculo. O mercado de arrendamento nas grandes cidades é tão reduzido e os preços tão altos que a maioria dos novos contratos são assinados com clientes estrangeiros, que dispõem de maior poder de compra.
(Top▲)Qual é a raiz do problema, em Portugal?
Não há uma única razão. Mas, se tivesse de eleger o 'Top 4' dos principais motivos por detrás da atual crise no acesso à habitação, seriam estes:
- Escassez de imóveis de nova construção: Este é um problema que se agravou após a crise de 2008, com a falência de muitas empresas de construção civil, a emigração de profissionais deste setor para outros países e a mudança estratégica de muitas grandes empresas de construção, que passaram do segmento residencial para as obras públicas ou negócios fora de Portugal.
- Subida dos custos de construção: Isto deve-se, em parte, ao facto de, durante alguns anos após a crise de 2008, os preços dos serviços e materiais terem estado comprimidos, e, por outro lado, às sucessivas crises mundiais: a pandemia de 2019, o aumento dos custos dos combustíveis, a escassez de mão de obra que levou ao seu encarecimento e ao aumento da inflação em geral.
- Escassez de terrenos urbanizados ou urbanizáveis nas principais áreas metropolitanas de Lisboa e Porto: Devido ao desequilíbrio entre a procura e a oferta deste tipo de imóveis, muitos proprietários aproveitaram a oportunidade para aumentar os preços.
- Perda de competitividade no setor imobiliário, que dificulta a redução dos preços, mesmo com a dissipação dos efeitos da inflação:
- A pressão fiscal aumentou significativamente nas duas últimas décadas, de forma direta e indireta, penalizando todas as etapas de construção de uma casa, desde a urbanização de um terreno, passando pela construção até à mediação da venda final. Segundo alguns estudos, o impacto fiscal na formação do preço de venda de uma habitação pode representar quase um terço.
- Aumento dos atrasos nos diversos licenciamentos por parte das câmaras municipais, em parte devido à pandemia e às restrições laborais associadas, e em parte por falta de investimento em recursos humanos, para dar resposta à retoma da construção após quase seis anos de paralisia.
- A regulamentação no setor da construção civil tornou-se mais exigente e complexa na última década, devido a exigências provenientes da Comunidade Europeia. Isto levou a um aumento dos custos com mão de obra e outros processos administrativos, os quais se refletem no preço final das casas.
(Top▲)Para um jovem que quer comprar a primeira casa, que barreiras existem?
Em primeiro lugar, o BCE tem vindo a aumentar a pressão sobre o sistema bancário, via Banco de Portugal, para reduzir a taxa de esforço de quem recorre a um crédito para comprar casa. Se há 2 décadas um jovem podia obter um empréstimo, somado a um crédito pessoal e contrair deste modo uma hipoteca para financiamento até 100% da aquisição de uma casa, hoje em dia, tal é impossível.
Os baixos salários que se praticam em Portugal, especialmente para os mais jovens, aumentam a Taxa de Esforço e impedem que estes consigam contrair um empréstimo, caso não possuam um pé-de-meia razoável, entre 20% e 30% do valor de uma casa. Tudo aponta para que no futuro este valor venha a subir até aos 40% ou até 50%, como já aconteceu nos idos anos 80~90. Por outro lado, muitos jovens possuem um vínculo contratual de curto prazo, o que dificulta a tarefa de aprovação do crédito.
(Top▲)Faltam incentivos? Quais? E que desafios futuros enfrenta a nova geração?
Em Portugal e noutros países europeus, os promotores privados são e sempre serão os principais dinamizadores do setor da construção residencial. Atualmente, muitos promotores estão mais focados na construção destinada ao segmento alto, dado que a procura se mantém elevada, as margens são mais atrativas e os riscos são menores. Mesmo com o apoio do PRR ou de outros fundos europeus, a capacidade construtiva das câmaras municipais é limitada e os prazos de conclusão tendem a prolongar-se, o que é habitual nas obras públicas.
Assim, seria fundamental que, em vez de o Estado se concentrar na construção de habitação própria, para venda ou arrendamento (assumindo o papel de senhorio para o qual não está vocacionado), estabelecesse um regime facilitador para:
- Promotores que queiram investir em construção acessível para jovens, de modo a:
- Diminuir o impacto fiscal na aquisição de terrenos e nas diversas fases da construção habitacional.
- Facilitar a conversão de terrenos rústicos em urbanos, muitos na posse das câmaras municipais, contra a condição de um preço máximo de venda por m², indexado por regiões, diminuindo assim o custo de aquisição dos terrenos.
- Criar uma via prioritária nos departamentos de urbanismo das Câmaras Municipais, para licenciamentos desde a fase de consultas, passando pelo licenciamento da construção até à emissão da Licença de Utilização Final.
- Facilitar o acesso ao crédito à habitação, melhorando as condições de bonificação do crédito, com apoio estatal, para compradores mais jovens (até aos 40 anos), ultrapassando as limitações impostas pelas regras do BCE para a Taxa de Esforço.
Quanto aos desafios enfrentados pela geração mais jovem, são mais do que previsíveis: sem meios para aquisição ou arrendamento de habitação, muitos jovens irão equacionar a emigração, opção infelizmente frequente para quem conclui a formação universitária.
(Top▲)Quem comprou casa debate-se, agora, com a subida dos juros e dificuldade em gerir a taxa de esforço. Como “sentem” o mercado, nesta matéria?
Por enquanto, apesar das previsões sombrias de muitos, estes jovens proprietários ainda não desistiram do seu sonho. Enquanto puderem, ou renegociando com os Bancos de modo a reduzir a subida das prestações, ou recorrendo ao apoio de familiares, vão tentando manter os seus compromissos bancários e conservar as suas casas.
Para muitos, é um "tica-tac" que vai esvaziando as suas poupanças enquanto esperam pela redução das taxas de juro do BCE. Se o BCE estender este período de alta de juros por demasiado tempo, muitos vão equacionar vender a sua casa.
(Top▲)Têm/tiveram conhecimento de algum tipo de casos de famílias que estejam no “limite” e para quem vender a casa seja opção?
Sim. Como trabalho essencialmente com o segmento da classe média-alta, deparei-me com casos semelhantes, especialmente por parte de famílias com filhos e, consequentemente, com uma estrutura de custos mais complexa. Estas famílias, mesmo tendo já iniciado o processo de mediação de venda, conseguiram reverter a decisão graças ao apoio dos pais, ou graças à renegociação bancária.
(Top▲)O Governo aprovou ajudas para os empréstimos da casa e apoios ao arrendamento. Como olham para estas medidas?
Estas medidas são manifestamente insuficientes e situam-se à margem dos principais agentes imobiliários: senhorios e promotores. Enquanto as medidas se focarem apenas do lado do comprador, serão sempre insuficientes e maioritariamente servirão para alimentar falsas expetativas e aumentar a desconfiança do setor imobiliário.
(Top▲)Paralelamente, faltam casas para arrendar e os preços dispararam. E há mais subidas à vista. Que diagnóstico fazem deste mercado?
Não era necessário esperar um ano, após a publicação do primeiro esboço do Pacote Mais Habitação, para constatar que as medidas então anunciadas e recentemente aprovadas seriam contraproducentes e gerariam desconfiança nos agentes imobiliários, principalmente no mercado de arrendamento.
Este pacote tem algumas medidas positivas, mas peca, mais uma vez, por olhar para o problema da habitação segundo uma perspetiva enviesada: a de achar que o problema de acesso à habitação se resolve apenas condicionando e regulando de forma rígida o mercado. O passado demonstrou que as vantagens imediatas e temporárias deste tipo de abordagem acabam sempre por ter um impacto negativo sobre o futuro do setor, porque minam a confiança dos senhorios e dos restantes investidores.
Desde janeiro, tenho assistido a muitos casos de proprietários que, estando confortáveis com a situação de arrendamento de longa duração, após o anúncio de várias medidas tendentes a aumentar a coação e a rigidez deste mercado, decidiram terminar contratos de arrendamento e vender os seus imóveis.
Enquanto não forem implementadas medidas com real impacto, que abordem o problema da habitação numa ótica integrada de incentivo à construção de casas, sem descurar os restantes problemas de gestão territorial (melhoria da rede de transportes e dos serviços de proximidade do Estado), estas e outras medidas serão apenas paliativos para um problema que não é exclusivo de Portugal, mas que tem um impacto maior nos nossos jovens.
(Top▲)Há quem procure nas periferias uma solução para arrendar casa, mas até aí os preços já são um desafio. É mesmo assim?
Sim, nos concelhos das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto que incluem 45% da população portuguesa esta tendência é comum a quase todos eles. Não se pode encarar o problema da habitação numa ótica meramente municipal; é necessário compreender que as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto têm, por si só, a capacidade de contribuir para a solução deste problema. Contudo, se nada for feito, serão também afetadas pela mesma questão de desequilíbrio entre procura e oferta. As Áreas Metropolitanas possuem o potencial para incentivar a construção de mais habitações a preços mais acessíveis. Como?
Através da colocação no mercado de terrenos para construção coletiva mais baratos, através da facilitação de projetos de licenciamento e acima de tudo através da criação de uma rede de transportes integrada mais eficiente.
Seria extremamente relevante que as soluções que venham a ser implementadas para abordar estas questões de habitação e mobilidade incluíssem o potencial financeiro e a capacidade de gestão dos investidores privados. Sem a sua colaboração, tudo tenderá a ser marcado pela lentidão e insuficiência, como já observado anteriormente. O Estado já demonstrou que, apesar das boas intenções, promessas eleitorais e fundos europeus, o problema não só persiste como se agravou. Chegou o momento de o Estado reconhecer que a solução para a habitação passa por estabelecer parcerias e um regime de confiança mútua entre 'a força do público e a energia do privado'.
(Top▲)O adiantamento da caução é outra dificuldade extra, por exemplo?
No momento atual do mercado, em que a maioria dos arrendamentos disponíveis são promovidos a preços muito elevados, especialmente nas grandes zonas urbanas ou de vocação turística, não se pode afirmar que questões pontuais como a caução sejam um obstáculo. Enquanto a oferta permanecer muito inferior à procura, todos os imóveis que chegam ao mercado atraem imediatamente uma fila de interessados, especialmente por parte de estrangeiros, que pagam todas as condições requeridas pelos senhorios, ou quase todas :)